A pandemia de COVID-19 marcou o ponto de viragem mais profundo na história recente do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Entre 2020 e 2022, Portugal mobilizou-se em torno da ideia de resiliência e reforço dos serviços públicos. Com a aprovação do Estatuto do SNS e a criação da Direção Executiva, o país parecia finalmente ter encontrado a fórmula para unir autonomia técnica, eficiência operacional e transparência.
Mas, três anos depois, o diagnóstico é claro: as reformas ficaram a meio da ponte.
Sob Marta Temido, o país viveu o ciclo da crise pandémica e da reforma institucional.
Com o novo Estatuto, desenhou-se uma arquitetura capaz de aproximar a gestão do território e de dar continuidade estratégica ao SNS — com uma Direção Executiva dotada de competências de coordenação operacional e a criação das Unidades Locais de Saúde (ULS) como estruturas integradoras de cuidados.
Com Manuel Pizarro (2022–2024), a reforma ganhou terreno: o modelo ULS foi generalizado (DL 102/2023), as USF-B voltaram ao centro da política de proximidade e a Direção Executiva, liderada por Fernando Araújo, começou a coordenar redes de urgência, planos de inverno e contratualização de desempenho.
Tudo parecia alinhar-se com a visão de um SNS moderno e orientado para resultados.
Mas este novo modelo organizacional, tão promissor, não bastou. Em poucos meses, multiplicaram-se substituições em administrações, atrasos no PRR e hesitações sobre a autonomia da Direção Executiva.
Manuel Pizarro não soube sair de cena e dar espaço ao novo CEO do SNS (ver editorial do Fórum Hospital do Futuro de outubro 2023)
A oportunidade histórica de uma maioria absoluta foi desperdiçada em amadorismo político e fragmentação executiva.
A chegada de Ana Paula Martins e o fim de um ciclo inconcluso
Quando Ana Paula Martins assumiu funções em abril de 2024, o SNS vivia uma das suas fases mais frágeis desde a pandemia. O Plano de Emergência da Saúde fora anunciado como resposta à crise das urgências e às listas de espera crescentes, mas o país ainda assimilava o impacto da demissão de Fernando Araújo, o primeiro Diretor Executivo do SNS — uma figura reconhecida pela sua competência técnica e pela genuína intenção de devolver autonomia ao sistema.
A sua saída simbolizou o esgotamento de um modelo que nasceu sob pressão política e amadureceu sem tempo nem sustentação.
Como escreveu Luís Marques no Expresso (republicado no Fórum Hospital do Futuro):
“A Direção Executiva do SNS nasceu torta e assim acabou — não por demérito próprio, mas por esgotamento de um modelo arranjado à pressa.”
Fernando Araújo acreditou que seria possível implantar em Portugal um modelo de gestão técnica e profissional, semelhante ao que funciona em outros países europeus.
O erro não foi de liderança, mas de contexto: tentou endireitar a sombra de uma vara torta, num sistema onde a política convive mal com a autonomia técnica e com a responsabilização por resultados.
As recentes palavras de Marcelo Rebelo de Sousa chamam a atenção para aquilo que a demissão de Fernando Araújo já demonstrara: sem um quadro de governança estável e respeitado, a competência técnica é insuficiente para sustentar a reforma.
A raiz do problema: ausência de fio condutor
A alternância política trouxe novas promessas. O Plano de Emergência para a Saúde de Luís Montenegro retomou objetivos louváveis — reduzir listas de espera, garantir médico de família, reforçar cuidados primários —, mas voltou a assentar na lógica do curto prazo.
Mais um plano, menos uma direção. Enquanto a estrutura continua sem fio condutor, o SNS acumula diagnósticos que raramente se traduzem em execução sustentável.
Portugal não sofre de falta de planos para o SNS. Sofre de falta de direção estratégica a longo prazo para a saúde.
As reformas do PS poderiam ter criado um sistema coerente, com liderança técnica e accountability pública. Mas a cadeia de comando entre Ministério e Direção Executiva nunca foi consolidada.
Os esquemas institucionais que o Fórum Hospital do Futuro publicou em 2022 aqui continuam atuais — não por visão, mas por inércia: o mesmo labirinto decisório onde o poder é difuso e a responsabilidade diluída.

A proposta do Fórum Hospital do Futuro: Dupla Governança
Em outubro de 2025, o Fórum Hospital do Futuro apresentou a Proposta de Dupla Governança da Direção Executiva do SNS, inspirada nas melhores práticas europeias.
A experiência destes últimos anos demonstrou que a simples criação da Direção Executiva do SNS não basta para garantir estabilidade, autonomia e transparência.
O modelo atual continua excessivamente dependente do ciclo político e das mudanças ministeriais, o que impede a consolidação de uma estratégia de longo prazo.
O resultado é um sistema em que os dirigentes mudam mais depressa do que as políticas amadurecem, e em que cada governo reinterpreta o papel da Direção Executiva segundo a sua conveniência.
A Proposta de Dupla Governança, apresentada pelo Fórum Hospital do Futuro em outubro de 2025, parte de um princípio simples:
A separação entre o poder político e o poder técnico é a condição mínima para a confiança pública e para a continuidade das políticas de saúde.
O modelo inspira-se em boas práticas de países como o Reino Unido, a Dinamarca ou a Holanda, onde as autoridades executivas da saúde operam sob supervisão independente, com mandatos estáveis e transparência na nomeação e avaliação de desempenho.
Propõe-se, assim, criar um Conselho Nacional de Supervisão do SNS (CNS-SNS), de natureza não executiva, que assegure:
- a aprovação do plano estratégico e do orçamento da Direção Executiva;
- a nomeação e avaliação do seu Diretor Executivo, com base em mérito técnico e consulta participativa;
- e a defesa da continuidade das políticas públicas de saúde entre ciclos governativos.
Esta proposta não retira legitimidade democrática à tutela — reforça-a, introduzindo equilíbrio, transparência e previsibilidade.
Em vez de um SNS sujeito a cada nova conjuntura política, teremos um sistema de direção partilhada, onde o Governo define o rumo e a Direção Executiva o executa com estabilidade e responsabilidade pública.
| Item | Modelo Atual (DL 61/2022) | Proposta de Dupla Governança |
|---|---|---|
| Nomeação | Ministro da Saúde propõe; Conselho de Ministros decide | Proposta do Conselho Supervisor; nomeação formal pelo Governo |
| Avaliação técnica | CReSAP não vinculativa | Shortlist internacional vinculativa |
| Participação | Nenhuma | Consulta estruturada a profissionais e utentes (40%) |
| Mandato | 3 anos, renovável | 5 anos, renovável uma vez |
| Supervisão | Inexistente | Conselho Nacional de Supervisão independente |
| Transparência | Processo interno | Concurso e audições públicas |
| Risco de politização | Elevado | Reduzido pela separação de funções |
O modelo separa poder político (política) e poder técnico (execução), reforçando a estabilidade e a legitimidade da Direção Executiva.
Proposta de ação: um Plano Estratégico do SNS a 10 anos
A mudança começa com um gesto simples: dar direção à Direção Executiva.
Propõe-se que a atual DE-SNS elabore e apresente um Plano Estratégico do SNS a 10 anos, articulado com o Conselho Nacional de Saúde, com metas de:
- Acesso e tempos de resposta;
- Valorização dos profissionais;
- Integração digital e interoperabilidade;
- Literacia e prevenção;
- Sustentabilidade financeira e ambiental.
O plano deve ser discutido publicamente e submetido à Assembleia da República como instrumento de orientação nacional — não partidário, mas institucional.
O SNS é demasiado importante para ser refém de ciclos eleitorais.
Entre estatutos, direções e planos de emergência, falta-lhe um pacto pela direção — uma estrutura que garanta continuidade, transparência e aprendizagem.
“O SNS não precisa de mais um plano político — precisa de um plano estratégico nacional, feito pela Direção Executiva, supervisionado pela sociedade e respeitado por todos os governos.”
Duas Rotas para a Reforma — do diagnóstico à ação
O apelo do Presidente da República a um pacto de regime na saúde tem mérito e oportunidade. Mas, para que não se torne apenas mais um exercício de retórica, é preciso dar-lhe concretização constitucional e administrativa. O Estado português pode agir em duas frentes complementares: uma rota executiva, imediata e prática, e uma rota institucional, estrutural e duradoura.
A curto prazo, o Governo pode agir sem depender do Parlamento, através de uma Resolução do Conselho de Ministros (RCM), que:
- Mandata a Direção Executiva do SNS para elaborar o Plano Estratégico 2026–2036 no prazo de 90 dias envolvendo a Comissão Parlamentar de Saúde e o Conselho Nacional de Saúde para um documento suficientemente consensual na sociedade portuguesa sobre o futuro proposto para o SNS.
- Aprova o plano em Conselho de Ministros e determina a sua publicação em Diário da República e estabelece um ciclo de avaliação permanente.
- Determina que todas as ULS e serviços do SNS alinhem os seus planos de atividades com as metas definidas no documento.
Este seria um gesto rápido de liderança e um referencial estratégico com legitimidade política e técnica — um primeiro “ato de direção” que concretiza o apelo presidencial.
Esta 1ª rota mais imediata e operativa não requer nova lei nem revisão orçamental; apenas vontade governamental e capacidade técnica da Direção Executiva.
Em paralelo, o Governo pode desencadear o processo legislativo de reforma da governação, com base na proposta do Fórum Hospital do Futuro de Dupla Governança:
- Mandatar CReSAP + Conselho Nacional de Saúde para um parecer técnico em 30 dias sobre modelos de supervisão e nomeação;
- Submeter à Assembleia da República a proposta de alteração ao DL 61/2022, criando o Conselho Nacional de Supervisão do SNS (CNS-SNS);
- Promover audições públicas e assegurar neutralidade orçamental;
- Após aprovação, instituir o CNS-SNS e celebrar com a Direção Executiva contratos-programa plurianuais com avaliação pública e acompanhamento semestral.
Esta segunda rota, mais estrutural e permanente, irá promover a consolidação legal e institucional do modelo, blindando a governação do SNS das oscilações partidárias e dando à Direção Executiva um mandato estável de 5 anos.
Endireitar o que nasceu torto
O ditado diz que “o que nasce torto, tarde ou nunca, se endireita”. Mas isso é apenas um ditado popular, não necessariamente o que tenha que acontecer.
O que falta agora não é a possibilidade de endireitar o que nasceu torto; é a vontade coletiva de o fazer, com humildade política, rigor técnico e sentido de missão pública.
Se a Direção Executiva assumir o papel de bússola, se o Governo tiver coragem para agir e o Parlamento capacidade para estabilizar, então o SNS poderá finalmente deixar de ser o reflexo das suas crises e tornar-se o espelho daquilo que o país tem de melhor: a determinação em cuidar, corrigir e construir juntos o futuro da saúde em Portugal.
Paulo Nunes de Abreu
Co-Fundador e Editor, Fórum Hospital do Futuro, Moderador do Think Tank Saúde Sustentável
Lisboa, novembro de 2025
Fonte da imagem: Oficina de Valores

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